terça-feira, 28 de julho de 2009

"A construção social da subcidadania"

De acordo com Turner, um drama possui início, meio e fim, podendo ser expresso através de um modelo agonístico, em situações de crise ou iminência de ruptura de um sistema. Nesse período de tensão, os resultados podem ser diversos. Pode predominar o peso da tradição, mantendo a continuidade da estrutura então abalada, adaptando-a, ou pode predominar o peso das forças de ruptura, quando as forças de continuidade não conseguem articular as armas que a estrutura vigente lhes confere. Estas armas, no que dizem respeito a um campo político, como o que aqui analiso, podem ser instituições como o Estado, o exército, a igreja ou a mídia.
Dito isto, podemos interpretar nosso drama nacional como uma série de períodos agonísticos, onde as elites políticas sempre se precipitaram em inventar nossas revoluções, através de golpes de Estado articulados em seus círculos mais restritos, constituindo assim uma história de continuidades e não de rupturas. Em 1822 o mito da independência, cristalizado simbolicamente na figura de D. Pedro I, surgiu dos interesses das elites brasileiras em busca de autonomia política.
Naquele momento, as correntes liberais, principalmente os ingleses, se constituíram na principal arena relacionada ao campo político. Aqui cabe ressaltar o significado atribuído por Turner aos conceitos de campo e arena. O campo seria o palco principal de um determinado enfoque teórico, e as arenas seriam campos relacionados onde as ações sociais efetuadas afetariam diretamente o campo central, não sendo menos importantes para a compreensão do evento metodologicamente selecionado.
Naquele momento, a arena intelectual teve sua maior expressão e influência na figura de José Bonifácio, um ideólogo liberal e político conservador que ficou conhecido como o patriarca da independência e fundador da nacionalidade brasileira. Bonifácio foi a maior figura simbólica daquele primeiro momento do drama por ter conciliado os interesses das forças econômicas com a necessidade de independência em relação às cortes portuguesas. Isto aparece com vigor em seus escritos políticos (BONIFÁCIO, 1964).
A necessidade política de criação de um mito nacional, na intenção de estabelecer uma unidade nacional através de uma identidade sedimentada no imaginário social, fez com que o campo político se articulasse intencionalmente com o intelectual, o que se cristaliza quando o Império, na década de 1850, encomendou um projeto de escrita para a história oficial do Brasil, elaborado então por Von Martius. Apesar de premiado pelo Império, Martius não levou o projeto à frente. Este desafio foi assumido pelo nosso primeiro historiador oficial, Varnhagem, em sua paradigmática obra História Geral do Brasil. Ali estava inventado o mito de nossa brasilidade: uma nação harmoniosa pautada na democracia racial, que depois seria atualizado e sistematizado por Gilberto Freyre (REIS, 2000).
Essa primeira parte de nosso drama tem início em 1808, como já mencionado, e termina em 1889, com alguns marcos e ritos importantes dentro deste período. A segunda metade do século XIX, no Brasil, foi marcada como a fase de maior estabilidade política e econômica, e como a época de maior fluxo de idéias novas, diretamente importadas da Europa e dos Estados Unidos.
O contexto ocidental do progresso e da modernização, neste sentido, proporcionou o pano de fundo moral e ideológico de nossa Abolição da escravatura e de nossa República. A Abolição, em 1888, representou a liberdade do mundo moderno. A República, em 1889, representou o patamar último do progresso. Nossos símbolos nacionais, como a bandeira e o hino, são ícones sacralizados destas representações. D. Pedro II foi, nesse contexto, o maior símbolo da modernidade que chegava com a era dos bacharéis, reproduzindo o modelo intelectual europeu.
As arenas relacionadas, nesse contexto, foram as correntes e grupos intelectuais que colaboraram diretamente na articulação molecular da proclamação da República, como os positivistas e os maçons, com suas propagandas republicanas. Os positivistas atuaram também diretamente na ação política, misturando assim os campos de ação como no caso de Benjamin Constant, considerado o pai da República, que recebeu a pasta do ministério da guerra no governo Deodoro, bem como Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul. Além do mais, a arena liberal cristalizou sua influência na imagem de Rui Barbosa, eternizado então como o organizador da República.
Este segundo momento, ou meio do drama, que é a República, foi marcado nem tanto pela brasilidade, mas pela idéia de modernização. É neste sentido que os principais campos de ação desta análise funcionam a partir de então. A situação agonística da Proclamação da República foi, assim, a necessidade de colocar o país nos trilhos do progresso e da modernização. Este objetivo foi perseguido durante toda a República Velha, nas mãos das oligarquias do café com leite, mas só atingido depois da Revolução de 30, marcando a última fase e o fim do drama nacional da independência.
Na década de 30, este final do drama nacional foi caracterizado pelo conflito entre duas arenas políticas: a crise do café com leite (São Paulo e Minas, que revezaram a presidência da República Velha) diante da rearticulação de antigas oligarquias do eixo Rio Grande do Sul - Rio de Janeiro - Recife. Este cenário contém uma aparência de ruptura, e Getúlio chega ao poder através do segundo eixo. A unidade nacional é posta em questão diante do conflito entre oligarquias, o que gera a necessidade de reafirmação da nacionalidade, ao mesmo tempo em que a modernização é palavra de ordem do dia.
Sendo assim, o paradigma radical da unidade nacional, como base ideológica do Estado corporativo de Vargas, foi o totalitarismo europeu, e a reafirmação de nossa identidade nacional foi articulada tanto no campo político quanto no intelectual. Quanto ao primeiro, temos a criação da SPHAN, secretaria de patrimônio histórico e artístico nacional, com o objetivo de selecionar um acervo que compusesse nossa tradição e a imagem de nosso passado no imaginário da nação.
Quanto ao segundo, intelectuais que eram interlocutores diretos do SPHAN, principalmente Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, estiveram reafirmando o caráter positivo de nossa nacionalidade através dos mitos da democracia racial e social e do brasileiro cordial.
Neste sentido, Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil são livros emblemáticos, fundadores de mitos nacionais que se eternizaram em nosso senso comum a ponto de dominar nossa mentalidade política e até científica. Casa Grande & Senzala, na verdade, retoma, sistematiza e sofistica a democracia racial inventada por Varnhagem, revitalizando o fundo ideológico de nosso drama.
Além disso, a figura de Oliveira Vianna, como consultor jurídico do governo Vargas, foi fundamental na composição da ideologia tutelar do Estado, contendo a influência de idéias darwinistas, spencerianas e positivistas. Este fundo ideológico sustentado por Viana era pautado na concepção de que o povo era naturalmente inferior e precisava ser conduzido pelo Estado ao aperfeiçoamento coletivo.
É importante perceber que este drama envolve todo o povo brasileiro, o que significa que está bem vivo em nosso imaginário social. No entanto, seus grupos-astros são nossa classe política e nossa elite intelectual, bem como nosso estamento burocrático, que geralmente funciona de acordo com a classe política. Estes grupos incorporam e reproduzem gêneros de desempenho cultural, para usar mais uma vez os termos de Turner, o que significa que seu padrão de comportamento e sua forma de pensar são a representação de paradigmas radicais principalmente europeus e, em certa medida, norte-americanos.
Além do mais, podemos identificar dentro deste grande drama nacional a articulação de arenas regionais de conflitos, que se constituem em dramas regionais paralelos ao nacional. Este é o caso das revoltas e insurreições regionais tanto no Império quanto na república, como por exemplo, a inconfidência mineira e as revoltas de Canudos e do Contestado. Sejam elas com apoio popular ou não, o importante é compreender que ali se empreenderam forças sociais de independência ou de protesto diante da unidade nacional, possuindo assim seus próprios grupos-astros, mitos, mártires e gêneros de desempenho, ao mesmo tempo em que foram arenas relacionais do campo nacional.
É interessante notar também que os nossos mártires ou heróis nacionais, sendo os principais deles D. Pedro I, D. Pedro II e Getúlio Vargas, acabam se transformando em algozes, quando vistos do ponto de vista dos dramas regionais. Não há mito mais marcante do que o chefe de um estado tutelar findar sua vida com um tiro na cabeça. Desta forma, o imaginário popular às vezes se confunde, podendo ser determinado pelo papel e pelas ideologias a que cada indivíduo ou grupo esteja diretamente ligado, dentro desse complexo contexto de articulação entre um drama regional e outro nacional.
Dentro deste cenário nacional, é muito curioso o papel historicamente desempenhado pelos nossos militares. Seja ao lado de conservadores, progressistas ou liberais, eles sempre foram cópias de si mesmos, ou seja, sempre foram o seu próprio paradigma radical, reproduzindo em todos os nossos golpes e repressões o papel de eternos guardiões da ordem em nome do progresso. A base ideológica dessa autopercepção coletiva dos militares remonta ao positivismo pré-republicano, a que devemos a idéia de que qualquer tipo de anarquia seria extremamente incompatível com o progresso.
Nossa necessidade de inventar um mito nacional se deve a ausência, em nossa jovem nação, do que Turner chama de consenso social sobre os valores. Isto significa a ausência de uma tradição firmemente consolidada no imaginário social, como foi, por exemplo, o caso das civilizações orientais estudadas por Max Weber. Devido a isso, nosso drama é caracterizado não só pela necessidade de se alinhar aos padrões políticos e econômicos do mundo moderno, mas também pela busca desesperada de uma identidade cultural.
Por fim, gostaria de ponderar uma propriedade fundamental dos dramas sociais identificada por Turner, que é o seu caráter elástico. Isto significa que um drama pode compreender grupos antagônicos e dialéticos no interior de sua estrutura. Sendo assim, a dinâmica social do campo Brasil, ao contrário do que sutilmente sugere Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, seria casa grande versus senzala, senhor versus escravo, elites versus povo, burguês versus proletário (SOUZA, 2003). Mas este é outro drama brasileiro que não cabe explorar neste trabalho.
Em suma, o que procurei analisar aqui foi a necessidade de articulação de nossas elites políticas e intelectuais em torno da necessidade de invenção de um imaginário social que sedimentasse a unificação política do país. É este processo, que procurei compreender como o nosso grande drama inaugural, que explica a criação de nossa identidade nacional na forma de uma brasilidade positiva, que omitiu e naturalizou nosso histórico distanciamento entre Estado e nação.
De modo que o resultado da dramatização de nossas elites a partir do paradigma radical europeu de Estado-nação não logrou nenhuma eficácia. Isto seria um caminho inverso ao processo civilizatório europeu, onde a cidadania se constituiu de baixo para cima. Como conseqüência, o estranho amálgama entre brasilidade e Estado tutelar só serviu para agravar nosso principal drama social, cristalizado em um naturalizado abismo entre um Estado virtual e a vida cotidiana da nação.
Todas as referências a Turner usadas aqui se remetem a mesma obra, não sendo necessário assim repeti-las.
Referências bibliográficas:

CADERNOS DE HISTÓRIA 7. José Bonifácio de Andrada e Silva. Escritos Políticos. São Paulo: Editora Obelisco, 1964.
CHAUI, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
COSTA, João Cruz. Contribuição à História das idéias no Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2004.
______. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: Record, 1990.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. De Varnhagem a FHC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 2000.
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
TURNER, Victor. Dramas, fields, and metaphors. Cornell University: Cornell University Press, 1975.

Autor:
Fabrício Barbosa Maciel
macielfabricio[arroba]yahoo.com.br
Bacharel em Ciências Sociais pela UENF – Universidade Estadual do Norte Fluminense; Mestrando em Políticas Sociais pela UENF; Membro da pesquisa "A construção social da subcidadania" coordenada pelo prof. Jessé Souza; e Membro do NETS – grupo de estudos em teoria social, coordenado pela prof. Adélia Miglievich.

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